A gente que está na luta está acostumado a gritar para ser ouvido, no hospital, pela polícia, na favela. Enfim, a nossa vida é sempre no grito. Acho que a gente já nasce gritando por isso. Queria agradecer o mandato que a gente defende com muita tranquilidade, com muita gratidão porque sempre esteve ao nosso lado sempre que a gente pediu, não só a quem trabalha no mandato, mas também é o Marcelo que sempre a gente precisou e que houve a possibilidade dele estar presente, ele sempre esteve. O mandato sempre esteve aberto, não só para minha pessoa, mas para qualquer morador que a gente enviasse sendo Borel, sendo de alguma Favela da Grande Tijuca ou não, que a gente enviasse por alguma necessidade mais urgente ou situação difícil de violência, enfim a gente pode contar e isso é muito bom, né.
É bom essa presença toda no prédio. A gente tem fome de ocupar os espaços. Ocupar os espaços que são nossos, mas que nos ensinaram que não eram nossos, que não eram pra nós. Então é muito bom quando a gente vê essa fluência de pessoas em espaços como esse a gente entende que é muito bacana. E é bom a gente ter isso mesmo. Tá junto, tá perto. A gente precisa dessa energia.
Dizer que é muito bom tá aqui, até porque embora sendo aliados e amigos. Todos muitos queridos, todos na luta, a gente vai vendo reproduzindo dentro dos nossos espaços de discussão o layout da sociedade brasileira, quer dizer três homens brancos, uma mulher pobre, preta, negra, favelada. Enfim, ainda sendo tolhida na sua fala, porque a minha companheira está ali dizendo: “Fala pouco! Fala pouco”! E é outra negra. Então realmente é a conformação do que é realmente a sociedade brasileira: o pobre oprimindo o outro pobre. Quer dizer, não fala muito não. Geralmente pobre fala isto para outro pobre: Não fala muito não porque se não vai sobrar para todo mundo! Então fica quieto. Né. Mas, não adianta Renata Trajano [companheira]. Não vem com essa não.
Então, assim. Primeiro dizer... Pobre sempre chega atrasado porque pegou trânsito, enfim. Mas, dizer que é muito angustiante tá aqui. Primeiro angustiante porque é muito difícil pra mim. É engraçado, a pessoa diz assim. Quando a gente está entre amigos, pessoas conhecidas, a gente fica mais a vontade porque se a gente falar uma besteira o amigo finge que não ouviu, ou então dá uma zoada, e fica tudo bem. Pra mim é muito difícil falar pra amigos e pessoas tão importante. Pessoas que estão na luta a mais tempo que eu, um pouco menos, ou que tão no mesmo tempo. É muito difícil falar porque parece que tudo que a gente vai falar já foi dito. Tudo que a gente vai falar é redundante. Mas, eu também entendo que a redundância é importante porque enquanto a gente não resolve as coisas, as mesmas coisas as mesmas verdades ficam sendo ditas até que a gente venha a exaurir a necessidade de dizê-las. Então a gente vai continuar dizendo. Mas, é muito angustiante. É angustiante ter que falar. É angustiante ter que tá aqui discutindo militarização da nossa vida cotidiana. Discutir militarização de cultura, discutir militarização de vida particular. O que há de mais precioso para nós é o que? É a nossa... a nossa individualidade, o lugar em que a gente vive. É a nossa casa.
Então, eu até estava brincando ontem porque uma das minhas amigas é casada com um policial da UPP, o cara super bacana e tal, uma amiga, apesar dele. E aí, ela nasceu na favela, foi criado na favela. Saiu depois, o pai se formou, conseguiu um trabalho melhor, uma vida melhor, ele saiu da favela. Mas, mora na Tijuca, enfim. E aí eu falei, bom, brincando: Daqui a pouco vamos ter um soldado em casa, para cada um de nós, enfim. Porque cada vez a sociedade clama por mais polícia. É impressionante como tudo se resolve com polícia. Você ouve... Qualquer problema que acontece, não tem que ter mais policiamento, tem que ter mais “policialização”, mais armamento. Então, a gente naquela angústia de pensar nesse controle cotidiano que a gente vem sofrendo ha seis anos (início das UPPs). Caminhamos para sete anos de ocupação militar, de controle militar da nossa vida cotidiana nas favelas. Concomitantemente a gente caminha para a negação do nosso espaço que é a cidade, esse espaço para nós muito caro, muito querido que é a favela, o nosso espaço de identidade. Terminamos uma pesquisa em três favelas. Grandes favelas do Rio de Janeiro pela Fiocruz, pela UFTM, pelo Laboratório Territorial de Manguinhos, fazendo um levantamento dos impactos do PAC, nas determinantes sociais de saúde, e a gente vai percebendo como nós estamos sendo exterminados. E a gente não está morrendo só de uma violência produzida por arma de fogo. A gente tá morrendo por uma violência que tá levando a gente a se matar. A nós mesmos nos violentarmos, e a gente fica pensando que tragédia nós estamos vivendo.
Nosso querido companheiro João Ricardo falou. É claro, eu estava conversando com a Marina, é muito importante que a gente passe a limpo esse período da nossa história. Isso que fez parte do que a gente é como brasileiro, como nação, como povo que com uma democracia tão jovem, tão novinha, ainda precisando ser mais burilada. A gente tem uma democracia tão recente, ainda tá aprendendo a como viver nessa democracia. Mas, pra nós negros, a gente nunca conseguiu viver essa plenitude da democracia. A gente nunca conseguiu viver isso. A gente é exterminado literalmente, a gente vive um processo de extermínio. São relatórios da Comissão de Direitos Humanos, são Mapas da Violência, são pesquisas acadêmicas, são levantamentos internacionais. A gente tem uma série de organizações de instituições de mecanismos de defesa de direitos humanos, agente de mecanismos de coleta de dados, e a gente tá sempre morrendo. A gente está sempre sendo assassinado. É uma tragédia o que a gente vive nesse país.
E as pessoas não tem o mínimo pudor de falar coisas hediondas. A gente teve um tempo atrás uma declaração do secretário estadual de segurança pública, o José Mariano Beltrame, dizendo que a gente precisaria perder uma geração. A gente já perdeu quatro...
Vamos dizer quem é a gente que perdeu. A gente perdeu quatro, a gente vai perder mais uma. A gente tem que perder mais. A gente tem sempre que perder. A gente quem?
A gente tem que começar a dar nome. A gente tá morrendo. A gente tá sendo exterminado. A gente está se violentando. É impressionante quando a gente começa... e é muito doloroso quando a gente começa a se... a ficar cara a cara com esses dados. Se é doloroso para homens brancos, mulheres brancas, tá muito mais doloroso pra gente que além de ter que ser confrontado pelos dados frios e duros dos números, a gente é confrontado de verdade. A gente vive! A gente vive isso que a gente mensura. A gente vive isso que a gente coleta. A gente vive. É muito difícil.
É complicado, eu não quero mais participar de mesas... É muito complicado para mim. está aqui [choro]. É muito difícil porque as pessoas tem a gente como referência, e os casos chegam pra gente, e parece que a gente não consegue fazer nada. E a gente... eu cansei, não vou ligar mais para Mariete... não vou mais, porque a gente não consegue. Porque também os companheiros que estão aqui a gente sabe a conformação desta casa é cada vez mais contra a gente, e a gente fica pensando: o que a gente vai fazer? A gente chora. Eu acho muito legal, a gente tem que chorar mesmo porque aí a gente busca mais força.
Então quer dizer, é a nossa lágrima e é a lágrima de quem tá junto com a gente que não pode tá aqui falando. E a gente pensa em quem sempre tá ganhando, né; quem sempre ganhou; quem nunca perdeu, e quem nunca vai perder, até quando há perda para todos. Quer dizer, todos não, né. A gente sabe quem sempre perde, e a convergência de poderes que sempre ganha. O poder armado, seja ele oficial, seja o poder das milícias como muito bem coloca o Marcelo e outros companheiros na sua luta que vivem nessas áreas, sempre ganham, sempre ganham, e a gente sempre perde.
A gente perde amigos, a gente perde irmãos, a gente perde famílias, amigos de amigos, a gente tá sempre perdendo. E aí a gente ouve o Guilherme [Boulos] dizendo das jornadas de junho, né[...] que marcam um momento bacana de retomada da luta pela democracia radical, por uma plenitude de direitos, por um estado democrático de direito de fato, por um Brasil real que viva o que o Brasil oficial vive, né; alguma parte que o Brasil oficial vive porque também é uma parte muito seleta. É que o Brasil real possa viver essa plenitude que o Estado democrático de direito versa pra nós. E a gente, quando a favela se coloca junto com quem tá na rua nas jornadas de junho, a gente começa a ouvir os boatos. Quer dizer, primeiro começa a dizer o seguinte, os traficantes da Cidade de Deus estão... e aí, estão infiltrados nas manifestações. Então vamos acirrar a violência policial e muita gente achou bacana porque os filhos da classe média começaram a experimentar com alguma regularidade no decorrer das manifestações o que os jovens favelados já experimentam com uma frequência, sem interrupção, sendo que eles experimentam desde que nascem e consequentemente as suas famílias e aí também eu quero, eu sei que tem familiares de policiais também, outro dia eu estava vendo uma matéria sobre os policiais mutilados, estão afastados, e falas muito apaixonadas em relação à profissão, a defesa da sociedade, né. Uma fala muito apaixonada pela corporação e a gente vai vendo o gradiente, né. Pardos e negros, mutilados, esquecidos, e aí nisso, as suas esposas e os filhos esquecidos, e o sonho que não vai acontecer nunca mais de poder retornar e defender a sociedade. E a gente não vai se dando conta de que nós estamos nos matando uns aos outros, que a gente tá sendo uma parte cada vez mais infeliz em todos os resultados tanto na ação quanto com quem sofre essa ação de violência e como eu estava dizendo quando a gente que nunca dormiu e foi o grande mote das manifestações, se o gigante acordou, se o povo acordou, a favela nunca dormiu e como eu dizia, as pessoas já gostando até. Imagina, as pessoas gostando de ver os filhos da classe média sofrerem aquela violência porque pelo menos agora eles vão acreditar e vão ouvir e vão entender que na favela a bala não é de borracha, a bala é de verdade. Que não tem tiro de borracha; tem tiro de fuzil, mas a criminalização contra a favela começou e continuou, quer dizer, começou. Foi tomando novas nuances, e aí as organizações de favela foram começando a serem criminalizadas. Além da gente ser sistematicamente silenciado, e desqualificado, somos desqualificados na nossa luta também.
Então esses coletivos de favela de alguma forma estão seno financiados pelo tráfico pra poder descerem. Como é? Essa gente não tem uma capacidade intelectual pra se organizar e ir pra manifestação na Presidente Vargas. Como pode? Não, só pode está sendo cooptados pelo tráfico, pagas pelo tráfico, miseravelmente pagas, porque eu vou te dizer, pagar 250 reais pra levar tiro, porrada na Presidente Vargas, 250 reais é muito pouco.
E aí começa sistematicamente a criminalizar as organizações de favela e até a fatídica lista, enfim, das organizações risíveis, até algumas, mas é uma realidade, a gente não sabe o que tá sendo construído à revelia de nós.
Quando a gente ouve como eu ouvi um lutador pela causa da habitação da moradia, da questão fundiária como o dr. Miguel Baldrez dizer que a gente não pode confiar no judiciário, como que eu vou confiar. Eu fico assim o quê que a gente vai fazer? A gente vai confiar em quem? É realmente como a gente ouviu sábado no documentário, é confiar na providência divina, é como continuar confiando. Quem acredita em Deus, vai continuar acreditando na providência divina. Mas, uma coisa a gente não pode deixar de fazer. A gente não pode deixar de lutar. A gente dá uma parada, uma parada estratégica. Os atletas param estrategicamente, vão recuperar suas forças pra gente retornar a luta. E a gente vai vendo, e a gente vai ficando cansado porque são os mesmos rostos. É muito difícil também os jovens que se colocam. Existem jovens como o Raul, no Alemão; meu filho no Boréu, e outros jovens que são importantíssimos hoje nessa resistência. Jovens inteligentíssimos, extremamente capazes, potências que tão fazendo, mas que como se colocam muito mais pelos arroubos da juventude mesmo, a juventude não tem medo, então a gente teme por eles e é muito difícil a gente incentivar. A gente tem que continuar caminhando, continuar gritando, continuar lutando como a gente sempre fez. Choramos daqui, paramos estrategicamente dali e continuar gritando.
Se encontrando; a gente precisa se encontra mais. É muito difícil, mas a gente precisa se encontrar mais. A gente precisa continuar discutindo e se apropriando desse espaço. Muitos vão sair feridos dessa luta, muitos vão desistir, muitos vão morrer. Ahn, isso faz parte! A gente vive todos os dias com uma espada na cabeça. É esse o Estado em que a gente vive, é essa tragédia, tragédia assim que a gente tem que guardar muito bem o que a gente tá falando as devidas proporções, tragédia pra uma parcela da população que sempre viveu essa tragédia seja em qualquer regime político que esse país tenha vivido. A gente sempre viveu tragédias: a fome, a miséria, a ausência de política de habitação efetiva, a precariedade, a descontinuidade de políticas, o silenciamento, a desqualificação, o assassinato; assassinato no parto, assassinato nos becos da favela, assassinato na porta do hospital; a gente tá morrendo. Como é que essa sociedade consegue assistir pela televisão um homem negro agonizando na porta do hospital, enfartando na porta do hospital, e depois você muda de canal, come seu belo jantar e vai dormir, até porque amanhã é outro dia. E tragédias como essa acontecem.
A gente não pode perder a nossa humanidade nós que estamos na luta, eu não estou falando, porque quem tá aí fora já perdeu; a gente não poder perder a nossa sensibilidade.
Discurso de Mônica Francisco no lançamento do relatório anual da Comissão de Direitos Humanos na ALERJ (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kNthrc-zrvU. Acesso em: 13 dez 2014