Quebrando as Regras


A TV ligada parecia não existir perante o tanto de problemas que inundavam sua mente, Carol, sua ex-esposa chegou ao restaurante.

A conversa fluiu entre uma bronca e outra, por mais que tentasse ponderar, o rumo era sempre tumultuado e cheio de cobranças pra cima dele, como: por que não foi no aniversário da filha, por que não compareceu no Natal.

Tentaria dizer que Papai Noel é um velho porco capitalista, inventado para explorar, mas ela logo falaria que tem uma filha, que não pode dizer que não entra no McDonald’s porque eles pagam menos para um funcionário, que na verdade a menina só quer um brinquedinho, que pelos precários meios de produção certamente está contaminado, ou ela acharia que uma fábrica chinesa que cobra centavos por um brinquedo tem controle de qualidade suficiente para evitar a contaminação, e ele insistiria que eles são feitos por chineses explorados e ela diria que ele é um pai de merda, que precisa de pensão, e ele diria que não tem vida própria, que tudo está indo de mal a pior, e a televisão diria que há rumores sobre a China, e alguém na mesa ao lado dá um pigarro, uma menina olha com os olhos gelados, a boca caída, as mãos fazendo movimentos repetitivos, ela era tão linda, alguém fala outra coisa, e é tanta coisa, tanta cobrança, ele dormia sozinho, comia sozinho, porra, ele transava sozinho, a boca dela mexendo, saindo perdigotos, caindo nele, o lugar é insuportável agora, e sua cabeça dói, ele xinga, não deu tempo dela nem olhar, a xícara voou na sua face, o café quente bateu, escorreu.

Ela soltou um grito, levantou, o café escorreu pelo vestido, mas eu fiz. Finalmente eu fiz, reagi.

Pigarro, peguei a xícara, fingi não escutar, o distrato, o café sendo jogado, o dinheiro pedido adiantado. Minha Carol indo embora, minha filha indo embora para sempre. 

FERREZ. Deus Foi Almoçar. São Paulo. Planeta, 2012, p. 61.  

O Peru de Natal

O  nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato de felicidade : gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais para afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira a mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto. 

Foi decerto por isso que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde os beijos às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi; não sei, duma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar em nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa do quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, e a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

-- Bom, no Natal, quero comer peru. Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

-- Mas quem falou de convidar ninguém! Essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é parto de festa, vem toda essa gente do diabo...

-- Meu filho, não fale assim...

-- Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinha de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de supetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas, e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e inda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia inda provavam um naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quer servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos,e  a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de Xerez, como aprendera na casa de Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. (...)

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourava. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

-- É louco mesmo!

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos denominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis da economia que sempre a tinha entorpecido numa quase pobreza sem razão.

-- Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a cotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus...

Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

"É louco mesmo"! pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo dum pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

-- Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

-- Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrimas sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. 

ANDRADE, Mário de. Contos Novos. Apud. SIQUEIRA E SILVA, Antônio de, e BERTOLINI, Rafael. Apostila Língua Portuguesa -- Novo Ensino Médio -- Volume único -- Curso Completo. São Paulo. IBEP, [2003], p. 194-5. 

Diploma Não é Solução

Vou confessar um pecado: às vezes, faço maldades. Mas não faço por mal. Faço o que faziam os mestres zen com seus "koans". "Koans" eram rasteiras que os mestres passavam no pensamento dos discípulos. Eles sabiam que só se aprende o novo quando as certezas velhas caem. E acontece que eu gosto de passar rasteiras em certezas de jovens e de velhos...

Pois o que eu faço é o seguinte. Lá estão os jovens nos semáforos, de cabeças raspadas e caras pintadas, na maior alegria, celebrando o fato de haverem passado no vestibular. Estão pedindo para a festa! Eu paro o carro, abro a janela e na maior seriedade digo: "Não vou dar dinheiro. Mas vou dar um conselho. Sou professor emérito da Unicamp. O conselho é este: salvem-se enquanto é tempo!". Ai o sinal fica verde e eu continuo.

"Mas que desmancha-prazeres você é!", vocês me dirão. É verdade. Desmancha-prazeres. Prazeres inocentes baseados no engano. Porque aquela alegria toda se deve precisamente a isto: eles estão enganados.

Estão alegres porque acreditam que a universidade é a chave do mundo. Acabaram de chegar ao último patamar. As celebrações têm o mesmo sentido que os eventos iniciáticos -- nas culturas ditas primitivas, as provas a que têm de se submeter os jovens que passaram pela puberdade. Passadas as provas e os seus sofrimentos, os jovens deixaram de ser crianças. Agora são adultos, com todos os seus direitos e deveres. Podem assentar-se na roda dos homens. Assim como os nossos jovens agora podem dizer: "Deixei o cursinho. Estou na universidade".

Houve um tempo em que as celebrações eram justas. Isso foi há muito tempo, quando eu era jovem. Naqueles tempos, um diploma universitário era garantia de trabalho. Os pais se davam como prontos para morrer quando uma destas coisas acontecia: 1) a filha se casava. Isso garantia o seu sustento pelo resto da vida; 2) a filha tirava o diploma de normalista. Isso garantia o seu sustento caso não casasse; 3) o filho entrava para o Banco Brasil; 4) o filho tirava diploma.

O diploma era mais que garantia de emprego. Era um atestado de nobreza. Quem tirava diploma não precisava trabalhar com as mãos, como os mecânicos, pedreiros e carpinteiros, que tinham mãos rudes e sujas.

Para provar para todo mundo que não trabalhava com as mãos, os diplomados tratavam de pôr no dedo um anel com pedra colorida. Havia pedras para todas as profissões: médicos, advogados, músicos engenheiros. Até os bispos tinham suas pedras.

(Ah! Ia me esquecendo: os pais também se davam como prontos para morrer quando o filho entrava para o seminário para ser padre -- aos 45 anos seria bispo -- ou para o exército para ser oficial -- aos 45 anos seria general.)

Essa ilusão continua a morar na cabeça dos pais e é introduzida na cabeça dos filhos desde pequenos. Profissão honrosa é profissão que tem diploma universitário. Profissão rendosa é a que tem diploma universitário. Cria-se, então, a fantasia de que as únicas opções de profissão são aquelas oferecidas pelas universidades.

Quando se pergunta a um jovem "O que é que você vai fazer?", o sentido dessa pergunta é "Quando você for preencher os formulários do vestibular, qual das opções oferecidas você vai escolher?" E as opções não oferecidas? Haverá alternativas de trabalho que não se encontram nos formulários de vestibular?

Como todos os pais querem que seus filhos entrem na universidade e (quase) todos os jovens querem entrar na universidade, configura-se um mercado imenso, mas imenso mesmo, de pessoas desejosas de diploma e prontas a pagar o preço. Enquanto houver jovens que não passam nos vestibulares das universidades do Estado, haverá mercado para a criação de universidades particulares. É um bom negócio.

Alegria na entrada. Tristeza ao sair. Forma-se, então, a multidão de jovens com diploma na mão, mas que não conseguem arranjar emprego. Por uma razão aritmética: o número de diplomas é muitas vezes maior que o número de empregos.

Já sugeri que os jovens que entram na universidade deveriam aprender, junto com o curso "nobre" que frequentam, um ofício: marceneiro, mecânico, cozinheiro, jardineiro, técnico de computador, eletricista, encanador, descupinizador, motorista de trator... O rol de ofícios possíveis é imenso. Pena que, nas escolas, as crianças e os jovens não sejam informados sobre essas alternativas, por vezes mais felizes e mais rendosas.

Tive um amigo professor que foi guindado, contra a sua vontade, à posição de reitor de um grande colégio americano no interior de Minas. Ele odiava essa posição porque era obrigado a fazer discursos. Um dia ele desapareceu sem explicações. Voltou com a família para o seu país, os Estados Unidos. Tempos depois, encontrei um amigo comum e perguntei: "Como vai o Fulano?". Respondeu-me: "Felicíssimo. É motorista de um caminhão gigantesco que cruza o país!".

Alves, Rubens. Diploma não é Solução. Folha de São Paulo, 25 de maio de 2004.

ERA UMA VEZ

Antes de chegar ao bar, Era Uma Vez tirou os óculos. O sereno caía e ele não enxergava.

Havia decidido não pensar em nada naquela noite. Estava próximo ao bar.

Começou a se perguntar por que os seres humanos não podem guardar momentos.

Chegou ao bar e começou a olhar o ambiente.

Não tinha nada para fazer ali.

Nunca havia feito amizade com ninguém fora de sua família.

Cadeiras cheias de carne morta, sonhadores de um futuro agora já primitivo.

Voltou para o ponto, ato contínuo, notou que entre a placa de ferro e o ponto havia duas teias de aranha.

Uma teia era inclinada para cima, a outra para baixo.

No meio, a pequena aranha.

As teias pareciam ser feitas de diamante devido ao sereno que nelas caía.

O ônibus chegou, Era Uma Vez entrou rapidamente, chegou em casa, sentou no sofá e sentiu falta do brilho da teia, pensar nisso doía demais.

Não conseguia parar de pensar.

Abriu a geladeira, pegou um cubo de gelo, foi para a sala e arremessou-o contra a parede. Viu o brilho por alguns instantes, era quase o mesmo brilho que havia visto na teia.

Correu para a geladeira, pegou a bandeja de gelo, foi para a sala novamente, começou a arremessar um a um os cubos de gelo na parede, via o brilho e queria ver de novo, e de novo, e de novo...

O chão da sala já se encontrava encharcado.

Para Era Uma Vez nenhum momento era como o primeiro, satisfação prorrogada, mas não era a mesma coisa, o primeiro ato foi o único.

Passadas  algumas horas, pegou um balde de tinta e começou a pintar o lugar onde o primeiro cubo havia se quebrado.

Onde o primeiro brilho teve vida. 

Começou a se perguntar por que os seres humanos não podem guardar momentos.

E logo tinha pintado toda a sala, a cozinha, e logo jogava tinta nos móveis, e via o brilho por alguns segundos.

O momento tinha sido preservado.

Mas havia outros momentos.

Nunca podia parar.

Fotos, filmagens, anotações, imagens, lembranças, coisas que arquivamos em nós mesmos.

Os momentos fugiam.

Não era o brilho que Era Uma Vez procurava.

Não eram os momentos bons.

Naquela noite, dormiu como uma criança após ouvir um linda história de alguém que ele ainda não conhecia. 

Acordou cedo e foi para o bar novamente.

Chegou e todos ficaram olhando para aquele homem com uma picareta na mão.

Começou a cavar em volta do ponto de ônibus.

Conseguiu tirar e o colocou nas costas.

Chegou em casa e deitou o ponto no meio da sala.

A teia estava pendurada nele.

Deitou do lado do poste e ficou olhando fixamente para a teia.

Ferrez. Ninguém é Inocente em São Paulo, p.45