A TV ligada parecia não existir perante o tanto de problemas
que inundavam sua mente, Carol, sua ex-esposa chegou ao restaurante.
A conversa fluiu entre uma bronca e outra, por mais que
tentasse ponderar, o rumo era sempre tumultuado e cheio de cobranças pra cima
dele, como: por que não foi no aniversário da filha, por que não compareceu no
Natal.
Tentaria dizer que Papai Noel é um velho porco capitalista,
inventado para explorar, mas ela logo falaria que tem uma filha, que não pode
dizer que não entra no McDonald’s porque eles pagam menos para um funcionário,
que na verdade a menina só quer um brinquedinho, que pelos precários meios de
produção certamente está contaminado, ou ela acharia que uma fábrica chinesa
que cobra centavos por um brinquedo tem controle de qualidade suficiente para
evitar a contaminação, e ele insistiria que eles são feitos por chineses
explorados e ela diria que ele é um pai de merda, que precisa de pensão, e ele
diria que não tem vida própria, que tudo está indo de mal a pior, e a televisão
diria que há rumores sobre a China, e alguém na mesa ao lado dá um pigarro, uma
menina olha com os olhos gelados, a boca caída, as mãos fazendo movimentos
repetitivos, ela era tão linda, alguém fala outra coisa, e é tanta coisa, tanta
cobrança, ele dormia sozinho, comia sozinho, porra, ele transava sozinho, a
boca dela mexendo, saindo perdigotos, caindo nele, o lugar é insuportável agora,
e sua cabeça dói, ele xinga, não deu tempo dela nem olhar, a xícara voou na sua
face, o café quente bateu, escorreu.
Ela soltou um grito, levantou, o café escorreu pelo vestido,
mas eu fiz. Finalmente eu fiz, reagi.
Pigarro, peguei a xícara, fingi não escutar, o distrato, o
café sendo jogado, o dinheiro pedido adiantado. Minha Carol indo embora, minha
filha indo embora para sempre.
FERREZ. Deus Foi Almoçar. São Paulo. Planeta, 2012, p. 61.