Foram os paraenses que devassaram a Amazônia.
Escalaram-na silenciosa e anonimamente. A curiosidade os levou a espiar por
todos os buracos da bacia mediterrânea. Os buracos eram os rios. Certo, o nordestino
a povoou com estrépito, mas sem a desbravar, sem a amansar, sem a domar. O
hemiciclo andino, tal um crescente de pedra, fascinava talvez o morador do
nosso estuário. Aprazíveis platôs verdes, senão pelo relevo topográfico, ao
menos pela diferença de clima, construíram o imã polar dos igaraúnas. As vias
fluviais, magníficas avenidas escancaradas entre o mar e as cordilheiras,
induzia-os a essas imprevistas projeções. [situação geográfica do Grande Rio
Amazonas e pântanos, igapós, lagos, charcos, igarapés, paranás, furos, canais,
estreitos, enseadas, baías, golfos, igapós de mansas, correntes, cachoeiras,
etc.] Nota do Editor.
Cada fio d´agua, na beleza meandra de mil curvas,
de mil cotovelos, de mil voltas, incitava a hinterlândia, penetrando-lhe a
hileia, rompendo o encantado véu do anfiteatro. Toda essa bizarra teoria de
fortes militares, nos lindes políticos do ocidente amazônico, equivale a uma
larga soma de energia paraense concretizada nos seus marujos das canoas preta.
Eles construíram, artilharam, guarneceram os baluartes que olhavam o invasor
egresso da Venezuela, de Nova Granada, do Peru, da Bolívia, do Equador.
Fenícios da Amazônia estendiam os périplos a todos os muros de granito que
fazem a moldura da imensa planície.
O paraense aprendeu a andar remando; aprendeu a
caçar navegando; aprendeu a pastorear, nadando. Em qualquer traço histórico de
sua vida – religioso e militar ou doméstico – há o símbolo, a canoa, que é sua
montada, o seu ginete, o seu corcel. Foi nesse cavalo de pau que ele percorreu
o Negro, o Uapés, o Branco, o Içá. Nele ainda galgou as vertentes do Xingi, do
Tapajós, do Madeira, em cujas varetas do leque formador, Beni, Mamoré, Guaporé,
trotou na montaria.
Ao arrepio dos caudais, no chouto do seu bucéfalo
arbóreo, atingiu as fontes do Purus, do Juruá, do Javari, do Ucaiale, do
Vilcanota. Invadiu o Guamá, o Moju, o Capim, o Araguaia. Investiu o Oiapeque, o
Araguari, o Maracá, o Jari, o Paru, o Nhamundá, o Trombetas. Cruzou, enfim,
todo o sistema hidrográfico alegremente, com aquele júbilo de nômade, que só
delicia ao flagelo do sol, à tortura da chuva, à hostilidade do vento.
Nessas incursões monumentais ampliava o solo
brasileiro fazendo recuar as divisas políticas do estrangeiro rumo do poente.
Animava-o qualquer coisa mística do homem das descobertas.
O bicho carpinteiro que o não deixava sentar ora o
mesmo bicho carpinteiro dos navegadores do século XV e do século XVI. As duas
maiores expedições perscrutadoras da hinterlãndia, verdadeiras epopeias conquistantes
da terra nova, embora chefiadas por gente da Península, organizaram-se em
Cametá. Uma, já lá vão trezentos anos, foi sob o comando de Pedro Teixeira, não
obstante o seu verdadeiro capitão tivesse sido um brasileiro, Bento Rodriguez
de Oliveira, que alguns cronistas afirmam ser pernambucano ou fluminense. Esta
expedição singrou o Amazonas, o Solimões, o Marañon até a escada de pedra que
sobe para o platô de Quito. Galgou os socalcos das cataratas, venceu os pongos
e as corredeiras, leu as inscrições rupestres, viu os signos abertos em
angusturas, divisou os letreiros gravados no sílex, e alcançou, enfim, esse
Paianino fabuloso, vizinho dos vulcões. Remavam-na 2000 igaraúnas em 200
canoas.
A outra expedição, dirigida por Francisco de Mello
Palheta, que se enfiou pelo Madeira, até Santa Palheta, que se enfiou pelo
Madeira, até Santa Cruz de La Sierra, subjugando cachoeiras, flechas de índios,
falta de alimentos, desconhecimento da plaga, foi ainda armada nas águas de
Cametá. Não é preciso mais para mostrar a energia do povo nessas sortidas, a
sua singular curiosidade. Enquanto o paulista heroico e construtor descia, nós
subíamos combatendo as forças mais cegas da natureza, a principiar pela
corrente.
Mesmo assim, todas as linhas de penetração fluvial,
do nosso sistema potâmico foram por nós percorridas de baixo para cima. Sem um
ponto de referência que não fosse a cúpula verde das sumaumeiras, abrindo a
umbela sobre o mar de folhagem na planura infinda, o ocidente amazônico se
recobriu de fortins e fortalezas, de modo a impedir que o espanhol egresso do
poente , distendesse suas linhas cartográficas. As armas para a defesa daqueles
baluartes lindeiros eram levados daqui, do estuário.
Antes, todavia, do pampeano amazônico haver
transportado canhões e casamatas, na era da Renascença, já havia transportado
aos cimos a civilização pré-histórica remarcada na arqueologia. Por esse
fenômeno do homem da planura se modificar nos paramos transformando-se de
extrator silvestre em pastor montesino, guardador de alpacas, lhamas, vicunhas
e guanacos, em rebanhos, não há dúvida que um anônimo tocantino pudesse também
descobrir no fundo glauco da hiléia, por entre seringais considerados viúvos de
caça e de peixe, quase desertos de vida, enfim – um mundo faunístico
exuberante, quer em terra quer na água”.
(...)
“Certas árvores eram proibidas de cortar. A dona do
roçado não deixava abater os cumarus, as pupunhas, as castanhas, sapucaias ou
do Pará, as copaíbas e as andirobas. Sobretudo as pupunhas, consideradas por
todos árvores do céu. Derrubavam, no entanto, criminosamente muitas essências
de alta valia, entre eles o babaçu, de 400 frutos em cada cacho e cujo carvão
dos caroços, segundo Snethlage [D. Emília Snethlage – naturalista,
ornitologista...; e, também foi diretora do Museu Goeldi, em Belém de 1914 a
1921], possui tão forte poder de absorção, que pode servir para máscaras de
guerra contra gases”.
(MORAIS, Raimundo de. Os Igaraúnas)