Escolarizando o mundo



Pequenas caixas na encosta,
pequenas caixas feitas de material padrão.
Pequenas caixas na encosta,
pequenas caixas, todas iguais.
Tem uma rosa e uma verde
e uma azule uma amarela.
E elas são todas feitas de material padrão.
E elas todas parecem exatamente iguais.
E as pessoas nas casas, foram todas para a universidade,
onde foram colocadas em caixas
e saíram todas iguais; e há médicos e advogados, e executivos de negócios.
E eles são todos feitos de material padrão.
E eles todos parecem exatamente iguais.
Eles todos jogam no campo de golfe,
e bebem seus Martinis secos.
E todos eles  tem crianças bonitas. E as crianças vão para a escola;
e as crianças vão para o acampamento de verão.
E então vão para a universidade. Onde são colocadas em caixas.
E saem todas iguais.
Os meninos entram para os negócios. E se casam e constituem família,
Em caixas feitas de material padrão.
E elas todas parecem exatamente iguais. Tem uma rosa e uma verde,
e uma azul e uma amarela.
E elas todas são feitas de material padrão.
E elas todas parecem exatamente iguais.

Doc. Escolarizando o Mundo. 2010. Fonte: www.shoolingtheworld.org.

Acusado no caso Dantas afirma ter sido coagido



Hugo Sérgio Chicaroni, 58 anos, condenado sob a acusação de ter sido emissário do banqueiro Daniel Dantas no oferecimento de suborno a policiais federais, disse que foi coagido pelo delegado Protógens Queiroz nos 35 dias em que esteve preso na Polícia Federal em São Paulo. O administrador de empresas disse que tentou avisar o juiz Fausto De Sanctis sobre os constrangimentos em uma audiência, mas o magistrado teria se recusado a ouvi-lo.

Na primeira entrevista concedida por um dos réus do caso Dantas, Chicaroni falou à Folha acompanhado pelo advogado Luiz Carlos da Silva Neto, que demonstrou que a estratégia da defesa do administrador será de desqualificar a conduta de Protógenes e De Sanctis.

Chicaroni afirmou que o delegado esteve presente no primeiro depoimento que prestou na PF e direcionou o testemunho no sentido de incriminar o banqueiro. Em troca do depoimento contra Dantas, disse, Protógens teria prometido o relaxamento de sua prisão. 

Para pressioná-lo, Protógenes também teria alardeado na carceragem da PF que o administrador de empresas era um “colaborador de polícia”, colocando a vida dele sob risco.

A Folha ligou para o advogado do delegado Protógenes Queiroz, mas as ligações caíram na caixa de mensagens. A assessoria de imprensa de Justiça Federal tentou localizar o juiz Fausto De Sanctis ontem, mas não obteve sucesso.

Folha – Como o sr. avalia a sua condenação a sete anos de prisão?

Hugo Sérgio Chicaroni – Acho a sentença absurda. Ela me parece mais uma vingança do que uma sentença. Não sou a pessoa que eles estão pensando que eu sou e tampouco sei o que eles acham que sei. Não tenho e jamais tive envolvimento com o Grupo Opportunity. O sr. Daniel Dantas eu jamais tinha visto na vida, jamais tinha falado com ele. Quem eu realmente conhecia nesta história toda era o delegado Protógenes.

Folha – Porque o sr. colocou Protógenes em contato com os representantes do Opportunity?

Chicaroni – Um cliente meu decidiu vender 50% de um frigorífico em uma reunião. Logo depois, eu encontrei o Wilson Mirza [advogado do Grupo Opportunity]. Ele disse que tinha ligado para Protógenes para falar das investigações sobre Dantas, noticiadas na imprensa, e não tinha sido atendido. O Mirza pediu que, se eu encontrasse o delegado, perguntasse se ele poderia recebê-lo. Pô, naquela hora, veio o negócio do frigorífico na minha cabeça. Pensei: se eu conseguir colocar esse camarada [Mirza] com o Protógenes, nem que seja para dizer: “Boa noite, até logo”, fiz a minha parte. Vai ser uma porta de entrada para eu oferecer o frigorífico [ao Opportunity].

Folha – A PF diz que o crime de corrupção teve início quando o sr. jantou com o Protógens em 1- de junho. Como foi esse encontro?

Chicaroni – Foi quando ele começou a armar essa história toda. Sempre que sobrava um tempo, combinávamos de conversar sobre assuntos corriqueiros. Naquela semana, eu liguei para ele e nos encontramos em uma pizzaria. Isso ocorreu 40 dias depois de eu ter conhecido o advogado do Opportunity. Perguntei ao Protógenes sobre o caso do Dantas, mas ele disse que estava fora dele. Depois, eu dei essa notícia para eles, e o assunto morreu. Foi aí que eu conheci o Humberto Braz [executivo ligado ao Grupo Opportunuity]. Falei com ele sobre negócios de clientes meus: um frigorífico e uma universidade.

Folha – O sr. é acusado de ter entregue R$ 50 mil aos delegados a mando do Opportunity. É verdade?

Chicaroni – No dia 17 [de julho], fomos jantar, e o Protógenes me disse que almoçaria no dia seguinte com o delegado que estava no caso Dantas, e ele ia ver se esse delegado receberia alguém do Grupo Opportunity. Achei estranho. No dia 18, Protógenes me ligou e falou que estava almoçando com esse delegado [Victor Hugo Ferreira] e pediu que eu fosse lá. Ele disse que receberia o Braz e me disse que, por aquela conversa, o Victor Hugo deveria receber R$50 mil. Falei: “Algum dinheiro eu tenho em casa, mas é de um cliente meu, para o qual estou desenvolvendo um projeto de viabilidade econômica”. Aí o Protógenes disse: “Mas ele [Victor Hugo] está precisando do dinheiro, fica tranquilo que eu garanto”. Aí eles foram até minha casa  e pegaram os R$50 mil. Não sabia que eles estavam armando tudo. O que me surpreendeu foi no dia 19 pela manhã, quando ele [Protógenes] me chamou no hotel Shelton e disse que receberia o Braz em um jantar e que o Victor Hugo iria pedir US$ 1 milhão para conversar com o Braz.

Folha – O sr. não via indícios de corrupção nessas situações?

Chicaroni – Alguma coisa não estava bem colocada. Certa vez minha mulher me disse uma coisa interessante: “Nós seres humanos temos momentos de cegueira, de não saber exatamente onde estamos pisando”.

Sempre tive uma baita admiração profissional pelo Protógenes. É aquela situação de você confiar numa pessoa, praticamente não pensar naquilo e dizer: “Que fique com ele. Ele sabe o que está fazendo”.

Folha – A PF achou R$ 865 mil em sua casa. Qual a origem do dinheiro?

Chicaroni – Esse dinheiro foi mandado a mim pelo Braz, para que guardasse em São Paulo, mas eu não sabia para quê os recursos seriam usados.

Folha – Mas, em um depoimento à polícia, o sr. disse que o dinheiro era de Daniel Dantas?

Chicaroni – O Protógenes foi me visitar duas vezes na custódia da PF. Ele me colocou numa situação muito difícil. Só não fui assassinado por muita sorte, porque, quando cheguei a Polícia Federal, ele dizia a todos: “Esse é o meu amigo que ajudou a polícia”. Duas vezes ele desceu na custódia da PF dizendo: “Os bandidos estão na rua, e você, que ajudou a polícia, está preso, isso não se justifica”. Lá na custódia tem um entra-e-sai de presos de tudo quanto é presídio. Isso vazou para os quatro quantos. Começei a receber ameaças de morte.

Foi todo um plano de pressão montado ali e, nas vezes que Protógenes me visitou, ele queria que eu dissesse que o dinheiro encontrado em minha casa pertencia ao Daniel Dantas. Eu não poderia ser leviano, não sei de quem era o dinheiro.

No primeiro depoimento que eu prestei na Polícia Federal, sem advogado, estava o Protógenes ao meu lado, dando pitacos, o tempo todo. Me fizeram promessas de que fazendo aquele depoimento a minha prisão seria relaxada. Eu estava desesperado para voltar para casa, porque eu sabia que aquela situação mataria minha mãe, de 86 anos. E estava preocupado com meu filho e minha própria vida. Ele não poderia estar naquela sala. Ali eu fiquei refém. Em uma audiência enquanto eu estava preso, pedi ao juiz Fausto De Sanctis que me ouvisse, mas ele negou, disse que não era apropriada de me ouvir. Eu precisaria ir à Justiça. Era uma pressão velada, mas eu sabia que corria risco de morte. Ainda recebo ameaças.

Folha – O sr. fez contatos com Sérgio Cirillo [sob o qual recai a suspeita de ter sido “espião” do Opportunity no Supremo Tribunal Federal]. Por que o sr. ligou para ele?

Chicaroni – O Cirillo era quem estava cuidando do Instituto Sagres, uma ONG que promove estudos e cursos na área de desenvolvimento de negócios. Liguei para ele para pedir cartões de visita, pois eu vendia os cursos do instituo.

FERREIRA, Flávio. “Fui coagido por Protógenes”, diz Chicaroni. FOLHA DE SÃO PAULO. 7 dez. 2008, p. A-10.

O bilhão e a manteiga



Saiu a sentença contra o ex-banqueiro por desviar coisa de 3 bilhões de reais. Pegou 21 anos de cadeia. É a maior sentença que um banqueiro já recebeu no Brasil – e eis aí uma excelente notícia. Cumprindo o papel que lhe cabe, o advogado Sérgio Bermudes, que trabalhava para o ex-banqueiro, protestou.

“Vinte e um anos é uma pena para homicida. Esse juiz é um homem malvado”. É o juiz Fausto Martin de Sanctis, titular da 6° Vara Federal Criminal em São Paulo. Pois dizem que ele é malvado mesmo. Sua vara ganhou o apelido de “câmara de gás”. Quem cai lá se dana. É a outra excelente notícia, porque a 6° Vara do juiz Fausto de Sanctis é especializada no julgamento de crimes financeiros. Quando crimes financeiros começam a ser julgados com rigor, algo de bom está acontecendo. 

Nos Estados Unidos, as sentenças contra os criminosos do colarinho-branco ficaram mais duras nesta primeira década de século. Bernard Ebbers, ex-barão da WorldCom, condenado por fraude contábil de 1 bilhões de dólares, pegou 25 anos de cana. Timothy Rigas, da Adelphia Communications, sentenciado por uma sucessão de crimes financeiros e fraudes contábeis, foi condenado a vinte anos. Denis Kozlowski, ex-presidente do conglomerado industrial Tyco, também pegou 25 anos de cadeia. Desviou 600 milhões de dólares da empresa para o seu próprio bolso. O rigor é explicável: a montanha de fraudes estava minando a credibilidade do sistema financeiro, do mercado de ações, da poupança. As penas mais duras destinavam-se a preservar a confiança da massa de cidadãos que poupam e investem suas economias.

Edemar Cid Ferreira é acusado de surrupiar 3 bilhões de reais, uma parcela de seus investidores e outra do BNDES, que é parte do meu, do seu, do nosso dinheiro. É mais ganancioso do que Dennis Kozlowski e seus 600 milhões de dólares. A pena de 21 anos pode chamar atenção no cenário brasileiro, mas não é nada de outro mundo, como prova o exemplo americano. O problema brasileiro não é a dureza com que a Justiça trata o crime dos ricos. É a insistência quase exclusiva com que pune apenas o crime dos pobres – e, às vezes, com estonteante brutalidade.

O exemplo mais gritante dessa distorção é o caso da doméstica Angélica Aparecida Souza Teodoro. Ela foi flagrada furtando um pote de manteiga num mercado em São Paulo, que custa por volta de 5 reais. Ficou 128 dias na prisão. Seu advogado, Nilton José de Paula Trindade, foi quatro vezes à Justiça para conseguir que fosse libertada. Julgada recentemente, foi condenada a quatro anos em regime semi-abreto. Na sua sentença, o juiz Cesar Augusto Andrade, da 23° Vara Criminal, explica que a pena não se deve apenas à tentativa de levar um pote de manteiga, mas, sobretudo ao fato de que a acusada, ao ser abordada pelo dono do mercado e o irmão, devolveu a manteiga, mas, fez ameaças contra os dois homens. O juiz considerou a ameaça de “singular gravidade” e pôs a ré em cana por quatro anos.

Ninguém chama a 23° Vara Criminal de “câmara de gás”, nem o juiz César Andrade de “homem malvado”.

PETRY, André. O bilhão e a manteiga. Veja. 20 dez. 2006, p. 156

Os Igaraúnas



Foram os paraenses que devassaram a Amazônia. Escalaram-na silenciosa e anonimamente. A curiosidade os levou a espiar por todos os buracos da bacia mediterrânea. Os buracos eram os rios. Certo, o nordestino a povoou com estrépito, mas sem a desbravar, sem a amansar, sem a domar. O hemiciclo andino, tal um crescente de pedra, fascinava talvez o morador do nosso estuário. Aprazíveis platôs verdes, senão pelo relevo topográfico, ao menos pela diferença de clima, construíram o imã polar dos igaraúnas. As vias fluviais, magníficas avenidas escancaradas entre o mar e as cordilheiras, induzia-os a essas imprevistas projeções. [situação geográfica do Grande Rio Amazonas e pântanos, igapós, lagos, charcos, igarapés, paranás, furos, canais, estreitos, enseadas, baías, golfos, igapós de mansas, correntes, cachoeiras, etc.] Nota do Editor.

Cada fio d´agua, na beleza meandra de mil curvas, de mil cotovelos, de mil voltas, incitava a hinterlândia, penetrando-lhe a hileia, rompendo o encantado véu do anfiteatro. Toda essa bizarra teoria de fortes militares, nos lindes políticos do ocidente amazônico, equivale a uma larga soma de energia paraense concretizada nos seus marujos das canoas preta. Eles construíram, artilharam, guarneceram os baluartes que olhavam o invasor egresso da Venezuela, de Nova Granada, do Peru, da Bolívia, do Equador. Fenícios da Amazônia estendiam os périplos a todos os muros de granito que fazem a moldura da imensa planície.


O paraense aprendeu a andar remando; aprendeu a caçar navegando; aprendeu a pastorear, nadando. Em qualquer traço histórico de sua vida – religioso e militar ou doméstico – há o símbolo, a canoa, que é sua montada, o seu ginete, o seu corcel. Foi nesse cavalo de pau que ele percorreu o Negro, o Uapés, o Branco, o Içá. Nele ainda galgou as vertentes do Xingi, do Tapajós, do Madeira, em cujas varetas do leque formador, Beni, Mamoré, Guaporé, trotou na montaria.

Ao arrepio dos caudais, no chouto do seu bucéfalo arbóreo, atingiu as fontes do Purus, do Juruá, do Javari, do Ucaiale, do Vilcanota. Invadiu o Guamá, o Moju, o Capim, o Araguaia. Investiu o Oiapeque, o Araguari, o Maracá, o Jari, o Paru, o Nhamundá, o Trombetas. Cruzou, enfim, todo o sistema hidrográfico alegremente, com aquele júbilo de nômade, que só delicia ao flagelo do sol, à tortura da chuva, à hostilidade do vento.


Nessas incursões monumentais ampliava o solo brasileiro fazendo recuar as divisas políticas do estrangeiro rumo do poente. Animava-o qualquer coisa mística do homem das descobertas.

O bicho carpinteiro que o não deixava sentar ora o mesmo bicho carpinteiro dos navegadores do século XV e do século XVI. As duas maiores expedições perscrutadoras da hinterlãndia, verdadeiras epopeias conquistantes da terra nova, embora chefiadas por gente da Península, organizaram-se em Cametá. Uma, já lá vão trezentos anos, foi sob o comando de Pedro Teixeira, não obstante o seu verdadeiro capitão tivesse sido um brasileiro, Bento Rodriguez de Oliveira, que alguns cronistas afirmam ser pernambucano ou fluminense. Esta expedição singrou o Amazonas, o Solimões, o Marañon até a escada de pedra que sobe para o platô de Quito. Galgou os socalcos das cataratas, venceu os pongos e as corredeiras, leu as inscrições rupestres, viu os signos abertos em angusturas, divisou os letreiros gravados no sílex, e alcançou, enfim, esse Paianino fabuloso, vizinho dos vulcões. Remavam-na 2000 igaraúnas em 200 canoas. 


A outra expedição, dirigida por Francisco de Mello Palheta, que se enfiou pelo Madeira, até Santa Palheta, que se enfiou pelo Madeira, até Santa Cruz de La Sierra, subjugando cachoeiras, flechas de índios, falta de alimentos, desconhecimento da plaga, foi ainda armada nas águas de Cametá. Não é preciso mais para mostrar a energia do povo nessas sortidas, a sua singular curiosidade. Enquanto o paulista heroico e construtor descia, nós subíamos combatendo as forças mais cegas da natureza, a principiar pela corrente.


Mesmo assim, todas as linhas de penetração fluvial, do nosso sistema potâmico foram por nós percorridas de baixo para cima. Sem um ponto de referência que não fosse a cúpula verde das sumaumeiras, abrindo a umbela sobre o mar de folhagem na planura infinda, o ocidente amazônico se recobriu de fortins e fortalezas, de modo a impedir que o espanhol egresso do poente , distendesse suas linhas cartográficas. As armas para a defesa daqueles baluartes lindeiros eram levados daqui, do estuário.

Antes, todavia, do pampeano amazônico haver transportado canhões e casamatas, na era da Renascença, já havia transportado aos cimos a civilização pré-histórica remarcada na arqueologia. Por esse fenômeno do homem da planura se modificar nos paramos transformando-se de extrator silvestre em pastor montesino, guardador de alpacas, lhamas, vicunhas e guanacos, em rebanhos, não há dúvida que um anônimo tocantino pudesse também descobrir no fundo glauco da hiléia, por entre seringais considerados viúvos de caça e de peixe, quase desertos de vida, enfim – um mundo faunístico exuberante, quer em terra quer na água”.

(...)

“Certas árvores eram proibidas de cortar. A dona do roçado não deixava abater os cumarus, as pupunhas, as castanhas, sapucaias ou do Pará, as copaíbas e as andirobas. Sobretudo as pupunhas, consideradas por todos árvores do céu. Derrubavam, no entanto, criminosamente muitas essências de alta valia, entre eles o babaçu, de 400 frutos em cada cacho e cujo carvão dos caroços, segundo Snethlage [D. Emília Snethlage – naturalista, ornitologista...; e, também foi diretora do Museu Goeldi, em Belém de 1914 a 1921], possui tão forte poder de absorção, que pode servir para máscaras de guerra contra gases”. 

(MORAIS, Raimundo de. Os Igaraúnas)

Murar o Medo



O medo foi um dos meus primeiros mestres, antes de ganhar confiança em substanciais escrituras aprendi a temer os monstros, fantasmas e demônios. Os anjos quando chegaram já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse [velho] engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não aventurar além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território.

O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender quando deixei minha casa natal numa invisível outra visão e roubava a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros que estradas.

Nessa altura algo sugeria o seguinte: que neste mundo há mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas. Não sabia que o [procrastinável] e em que nasci e cresci a narrativa do medo tinha uma invejável caça internacional. Os chineses que comiam criancinhas, Os chamados [touristas] que lutavam pela independência e um ateu barbudo com algo bobão. Esses fantasmas tiveram fim como todos os fantasmas. Tiveram fim quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes a nossa porta. Os ditos touristas são hoje governantes respeitáveis, e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção do terror foi, no entanto trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo tenham-se as mais invisíveis barbaridades em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave desta longa herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que existia não desarmou inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e ocidente. E porque se trata de entidades demoníacas não basta a circundarias da relação. Precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas era preciso fabricar inimigos, para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que em segredo tomam decisões m nosso nome. É isso que nos dizem para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mas segurança privada e menos privacidade.

Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelos [prelos] de conhecermos melhor esses costumes e de outro lado aprendemos a chamar “eles”.

Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é a seguinte: a realidade é perigosa, a natureza traiçoeira e a humanidade imprevisível. Vimemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a irracionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como, por exemplo, estas: por que motivo à crise financeira não atingiu a indústria do armamento. Por que motivo se gastou apenas no ano passado um trilhão e meio de dólares em armamento militar. Por que razão os que os hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam aos inimigos do cel. Kadafi Por que motivo realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça.

Se queremos [quisermos] resolver e não apenas discutir a segurança mundial teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias em todo o mundo sem que seja preciso o pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome.

Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gastam em armamento. A fome será sem dúvida a maior causa de insegurança do nosso tempo. Nesse há melhor ainda outra silenciada violência. Em todo mundo uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante seu tempo de vida. É verdade que sobre esta outra grande parte de nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato de simples de serem mulheres.

A nossa indignação, porém ainda é menor que o medo. Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e como militares sem fardas deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de éticas são esquecidas por estar provadas na reverberalidade dos outros. E porque estamos em guerra não temos que fazer provas de coerência, nem de ética, nem de legalidade. É sintomática e única a construção humana que pode ser visto do espaço seja uma muralha. Uma grande muralha foi erguida para proteger a China das guerras e invasões. A muralha não evitou conflitos e nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Dizem que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, a muros que dividem pobres de ricos. Mas, não há hoje no mundo muro que separam os que têm medo dos que não tem medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós do sul e norte, do ocidente e oriente.

Citarei Eduardo Galeano há cerca disto que é o medo global e diz ele: “Os que trabalham tem medo de perder o trabalho, os que não trabalham tem medo de nunca encontrar trabalho. Quando não tem medo da fome tem medo da comida. Os civis tem medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, e as armas tem medo da falta de guerras”. E se calhar agora acrescento eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

Couto, Mia. Murar o Medo. Conferência do Estoril, 2011. Disponível em www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE> acessado em 7 de agosto, 2014.